segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Matei o galo, Charly à Morue

 

Matei o galo ontem, não, esta crónica nada tem a ver com Benfica-Sportings nem futebóis, faz três anos que não vejo um jogo de futebol, e para quem me conhece sabe o quanto isso é grave, mas não posso, nem quero, apoiar mentiras por isso simplesmente boicotei, chamem-me brunista, negacionista ou qualquer outro ista, na verdade, nem sequer sabia que jogavam, descobri hoje por acaso, no meu feed de noticias do facebook, mas pronto, voltando ao assunto e ao galo…

Matei o galo, ontem de manhã, apanhei-o de manhãzinha na alvorada gelada, assim que abri a porta do galinheiro, estava à espera dele com um saco, para o caçar assim que ele saísse, e ele saiu, como sempre em primeiro, mas por forças ocultas mudou a sua rotina ou sentiu a minha presença ou pressentiu o seu futuro e ficou à porta, sem avançar, fi-lo avançar com um gesto e fechei a porta atrás dele para que as galinhas não saíssem, para que elas não vissem (olhos que não veem coração que não sente, diz-se) o saco já não servia para nada, corri atrás dele e entalei-o contra a vedação, apanhei-o, segurei-o pelas patas, virei-o de cabeça para baixo e levei-o para o lugar que tinha preparado no canto do jardim, uma tabua rija no chão, o machado, uma faca e uma panela, e preparei-me para a matança. Pousei-o sobre a tábua, pus o joelho em cima das patas, para que não as mexesse, puxei-lhe as asas para trás das costas e prensei-as também com o outro joelho libertando-me assim as duas mãos, fiz uma prece por ele, sem juntar as mãos que não preciso disso, ele, ainda mexia a cabeça e tentava levantá-la, mas à força da posição ela ficava à mercê do meu machado e foi o que fiz, peguei no machado e de um golpe só, seco e forte, matei-o, cortei-lhe o pescoço, o corpo estrebuchou com força, abanou e segurei-o para que não fugisse pelo jardim, de cabeça pendida a correr-me por cima das couves, morreu de um golpe só, mas mesmo se o pescoço tivesse separado do corpo a pele não se tinha separado, ora ou o machado não estava suficientemente afiado ou a pele, demasiado forte e elástica não cedeu e por isso tive que fazê-lo com a faca, degolei-o e deixei escorrer o sangue para a panela, queria tentar aproveitá-lo para fazer uma cabidela, mas como não sou ainda muito dotado nestas coisas não consegui recuperar grande coisa. Fez-se silêncio. Depenei-o na hora, mesmo se tinha preparado uma panela de água a ferver, sabia e já o tinha feito a seco com o meu outrora cunhado, na região de Ardéche, na realidade enquanto o corpo está quente consegue-se arrancar as penas sem problemas, tirando as maiores, das asas e da cauda, mais duras a arrancar.

 Levei-o para casa onde o lavei, limpei o interior, abri-o pelo ânus e extrai todo o interior, os intestinos, pulmões, fígado, coração, tudo, a moela também, no entanto é preciso abri-la e limpá-la, coisa que falhei, cortei-a onde não devia e sujei-a, é o que dá ser um maçarico nestas andanças, então, mas ò Pedro, nunca fizeste isso? Nas férias, no natal, na terra? Terra? Qual terra? Como gostava de responder com orgulho ou ironia, a minha terra era o Cacém, bom, mais precisamente a Agualva-Cacém, mas isso era mais difícil de explicar, o natal e as férias grandes eram lá passados e era a minha avó, que na sua sábia e longa existência analfabeta, sabia todas estas coisas da terra, até que a casa, os campos e as quintas ao pé do campo do Agualva foram arrasados para a construção de prédios e mais prédios, e até que ela, e o meu avô foram viver para um apartamento num terceiro andar, e ela, mais resistente que o meu avô, foi envelhecendo até morrer com os seus altivos noventa e seis anos, e eu, mesmo se ainda me lembre dessa humilde casa onde o meu pai e os meus tios cresceram, debaixo de uma figueira entre galinhas e coelhos, nunca pude, infelizmente, ter acesso a esses conhecimentos, por isso, a moela, acabou por ser cozida com outros restos e ossos para o cão, que aqui nada se desperdiça!

A minha mulher disse-me, ah, lá vais tu fazer outra vez a moral aos outros, não, não mulher, não se trata de fazer a moral, trata-se de mostrar aos outros que as coisas, as palavras, não podem ser só da boca para fora e que se falamos de autonomia alimentar, se falamos de elevar a consciência e que se comemos carne deveremos perceber de onde vem, como se mata, a proximidade da morte e o quanto custa uma vida, sim, porque mesmo que esteja orgulhoso de ter tido a coragem de o fazer, foi a primeira vez, e mesmo sabendo que tinha que o fazer, sinto na mesma uma certa tristeza de ter acabado com uma vida e quem vive na proximidade dos animais sabe que eles também têm uma alma, que também têm um pedaço de Deus dentro de eles e que também têm direito à vida.

Convidámos por isso os meus sogros a virem cá almoçar hoje, uma espécie de homenagem a Charly o galo, no entanto, e visto que a minha mulher e o meu sogro não comem carne, ofereci-lhes bacalhau, ou como quem diz em francês, de la Morue, o Charly, esse, com os seus dois quilos e meio já limpo, foi ao forno durante quase três horas, com ervas alho e limão!

O Gabriel, esse, já me pedia há umas semanas, pai, quando é que matas o Charly, quero comer frango e quero as suas penas verdes, nada como a sinceridade cruel das crianças, mas na verdade, só o matámos porque se tinha tornado agressivo e não podemos dar-não ao luxo de ter um animal agressivo no pátio, a mandar bicadas e sem nos deixar passar, sobretudo com crianças ao pé, e foi por isso, sobretudo por isso, que o Charly à Morue!

 

Publicado originalmente no Facebook a 30 de Janeiro de 2022


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