sábado, 2 de abril de 2022

Papoilas

Cada vez que vejo papoilas que penso em ti, que me vem à memória, à lembrança, aqueles tempos em que pelos caminhos que levavam ao rio e à queda de água passeávamos e apanhávamos felizes, margaridas e malmequeres, dentes de leão, papoilas e outras mais flores selvagens, eu, concentrado em tentar fazer bouquets de flores para a tua mãe e tu, mesmo se um pouco também, andavas sempre mais despreocupado, a descobrir todas essas maravilhas que esse pequeno mundo floral traziam ao teu grande mundo imaginário, no vagar próprio das crianças. 

A nossa casa dava sobre um cruzamento para a estrada principal, era uma casa antiga composta de dois andares, num primeiro andar o apartamento, ao rés da estrada tínhamos a garagem, um antigo estaleiro de carroças da altura em que os carros ainda não existiam e o comboio era rei. Quando saiamos, descíamos pelas escadas exteriores que davam directamente sobre a estrada, do outro lado havia um parque de estacionamento e a antiga estação de comboios agora transformada em escola primária, e depois o rio, o rio atravessava tudo, vinha da direita, passava por debaixo da ponte que fazia a ligação entre a estrada onde vivíamos e a povoação e continuava para baixo, por detrás do parque, da escola, e descia ate à grande cascata que caia a pique, que fazia o nome da terra e que atraia turistas de todos os lados. Naquele verão, a azafama que pairava naquele cruzamento antes da ponte e naquele parque de estacionamento era de tal ordem que a mim só me apetecia fugir, ou ficar fechado em casa de janelas fechadas, ouvidos e olhos tapados à espera que o tempo e o barulho das buzinas e das motas passassem e nós, no meio disto que só queríamos viver descansados no campo, no meio das árvores e do silêncio. A casa tremia com o passar dos camiões ainda antes das seis da manhã e o barulho só terminava à hora que o sol se punha. 

Saia contigo de manhã, tentava faze-lo cedo, quando ainda não havia ninguém na rua, a passear, levávamos a Emma connosco, descia as escadas com ela pela trela e tu pelo braço, com paciência poderia deixar-te descer sozinho,  às vezes acontecia, mas àquela hora da manhã já estava enervado, andava sempre enervado, sempre com pressa que fizéssemos a nossa volta sem sobressaltos, primeiro, descer as escadas, depois, atravessar para o outro lado da rua, depois, atravessar o parque de estacionamento e a escola e depois sim, relaxar um bocadinho enquanto caminhávamos de mão dada ao longo do rio. Aí, largava a cadela da trela mas sabes como ela é, uma vadia que não ouve ninguém, não quer saber, só quer é vadiar e cheirar por aqui e por ali, e lá ia ela, bem mais à frente, abandonando-nos e deixando-me sempre no meio termo entre a velocidade de cão e a velocidade de caracol, de um pequeno menino de pouco mais de ano e meio que só queria brincar e descobrir o mundo e eu já enervado, anda Gabriel, anda que o pai tem que ver onde é que anda a Emma, anda, que vem lá alguém com um cão, e tu sempre de arrasto que eu ainda tinha na memória a historia do pitbull, e cada vez que a saiamos que eu vivia stressado com essa história e com medo de encontrar outros cães pelo caminho, e que ela se fizesse atacar e isto e aquilo e tentava despachar os nossos passeios o mais depressa possível, para poder voltar para dentro de casa onde o stress  e o medo deixavam de existir. 

Mas nem sempre foi assim, na maioria das vezes guardamos na memória os traumas que nos percorrem e sofremos com o passado esquecendo os bons momentos que passámos, ao prolongarmos o caminho à beira rio parávamos sempre numa pequena clareira no meio dos pinheiros, mais afastada da estrada e do percurso pedestre principal, ai, não havia ninguém e ficávamos por lá, a brincar com as fagulhas dos pinheiros ou a desenhar com paus no chão, do outro lado do cruzamento havia igualmente uma clareira, enorme, cheia de erva, de malmequeres e margaridas e passávamos horas a ver as borboletas azuis que por lá dançavam, mas o que tu mais gostavas era das papoilas, as bordas ao longo de todo o caminho pedestre que descia para a cascada estavam carregadas de papoilas, e tu adoravas apanhá-las, uma para ti, uma para mim, uma para a mãe.

Ontem de manhã ao chegar ao trabalho vi as primeiras papoilas da estação, e fiquei assim, a pensar em ti, o dia todo a pensar em ti, elas eram e são como tu, assim tão belas e tão frágeis que assim que as arrancamos da terra que as suas pétalas caem, e eu, sempre na minha brutalidade sem tacto para cuidar, tento fazer o melhor que posso e lembrei-me desses tempos, desses tempos em que apanhávamos felizes, margaridas e malmequeres, dentes de leão, papoilas e outras mais flores selvagens, eu, concentrado em tentar fazer bouquets de flores para a tua mãe e tu, mesmo se um pouco também, andavas sempre mais despreocupado, a descobrir todas essas maravilhas que esse pequeno mundo floral traziam ao teu grande mundo imaginário, no vagar próprio das crianças.