domingo, 31 de julho de 2022

O Homem e o Pão

Aquele dia seria um dia importante, era um dia importante, a minha mãe tinha-me incumbido de ir comprar pão, pela primeira vez iria sozinho comprar o pão, sozinho não, o meu irmão, um ano mais novo iria comigo, tínhamos na altura uns cinco ou seis anos de idade, se não me engano, talvez uns sete, já não sei bem, que isto da memória às vezes falha, não importa, o que importa é que a minha mãe, tinha-me dado uma nota de dois mil escudos, daquelas azuis com uma caravela desenhada, que eu tinha dobrada, guardada no punho da mão, e tinha-nos dado a missão de ir lá a baixo à loja, comprar umas bolinhas, dando assim mais um passo em direcção, nesta tarefa que é a maternidade e a educação das crianças, a um pouco mais de responsabilidade de autonomia e de crescimento.

Descemos no elevador, saímos do prédio, e fomos até ao centro comercial que se encontra logo ali ao lado, um daqueles centros comerciais antigos, dos anos oitenta, da idade do bairro. Na altura, aquele centro comercial era ainda bastante habitado, era um local de encontro de famílias e vizinhos, e providenciava toda uma serie de serviços que viriam a extinguir-se aos poucos, à medidas que os anos iam passando e que os shoppings foram crescendo como cogumelos na área da grande Lisboa, mas, por aquela altura era, como disse, um centro bastante movimentado, havia, à entrada, do lado do prédio onde eu habitava uma churrascaria, logo depois uma pequena rampa ladeava a parede do centro ate chegar a uma plataforma onde tínhamos acesso à esplanada do café, e à entrada principal feita de duas grandes portas vidradas.

Lá dentro, para além destes dois pontos alimentares que duram ainda e resistentes até aos dias de hoje, encontrávamos por aquela altura começando pelo segundo andar: o vídeo clube, onde alugávamos as nossas cassetes das tartarugas ninja, o cabeleireiro da Bela e da Lela, ou Lola, já não sei, na altura do Sr. Machado, careca por sinal, onde a minha mãe nos fazia rasar a cabeça. Havia também uma lavandaria e um cafezito, mais tarde encontrava-me lá com a malta, lugar de preferência para beber umas jolas e fumar uns cigarros, um terraçozito ao segundo andar por baixo dos plátanos do estacionamento, munido de uma mesa de matraquilhos e o jornal desportivo do dia. Em baixo, ao rés-do-chão e logo à entrada a loja do Sr. do Gaz, que vendia as botijas de gaz Galp para os fogões, o talho, o café, a churrasqueira, a drogaria do Pracash, se não me engano, um Sr. de origem paquistanesa que sempre lá esteve, nos seus quatro metros quadrados e que vendia de tudo, lembro-me, no entanto, de ir lá comprar pilhas, atacadores e aquelas cassetes amarelas para a family game, a nossa consola da época que joguei até à exaustão, até chegar a Playstation. Lembro-me que o centro chegou também por uns tempos a ter uma peixaria, uma papelaria, uma loja de street-wear, de uns irmãos gémeos que viveram por lá uns tempos e que vendia skates e latas de spray para graffitis quando era moda, lá para o inicio dos anos dois mil. Chegou mesmo a haver, também, um pronto a vestir, mas, nada disso interessa para esta história, onde o que interessa era o ponto onde se vendia o pão, o minimercado ao interior do centro, também ele detido por um Sr. Paquistanês, o pai do Américo, um rapaz que não jogava nada bem à bola, mas que de vez em quando brincava connosco, ou seria Pracash o Sr. do minimercado e o Sr. da drogaria o pai do Américo, já não me lembro, são partidas da memória, no entanto, onde a memória não me falha é então, nessa tal ida ao pão.

Depois de me ter dado as bolinhas de pão num saco de plástico, esse Sr., o dono do minimercado, pousou atenciosamente como quem conhece os seus clientes habituais, as notas, e as moedas do troco na minha mão, para me ensinar e mostrar as contas, ainda hoje tenho na memória vir a andar no passeio, de volta a casa com o meu irmão ao lado e o troco na mão, a nota de mil e a nota quinhentos escudos mais as moedas na mão, e vir a fazer um esforço para segurar bem esse precioso troco, e a ideia de reentrar em casa com o sentido de missão cumprida, mostrando assim, orgulhosamente à minha mãe o como era grande e responsável.

Subimos a rampa que dá acesso ao prédio, entramos no prédio e no elevador, a porta estava mesmo a fechar-se quando de repente voltou a abrir-se, uma mão gigante veio de cima, descendo violentamente e agarrando-me as notas, vi um homem voltar-se e sair pela porta do prédio a correr enquanto a porta do elevador se fechava à minha frente. Chorei até ao nono andar!