Lembro-me de ter
feito um trabalho qualquer na escola primária, se não me engano na primeira
classe onde tinha desenhado para lá umas tartarugas e uns tubarões e de ter
sido elogiado por toda a gente pela qualidade dos meus desenhos, lembro-me, por
essa altura, de me dizer a mim mesmo que seria artista, iria ser artista. Assim,
Desde o inicio da primária até ao fim do secundário toda a minha escolaridade nada
mais foi do que uma sofrida espera, uma espera por esse momento, esse momento
em que poderia ir estudar verdadeiramente Arte, e fui.
Fui estudar Arte,
queria ser artista, mas que bem, sabia que não havia trabalho para quem ia para
ali, mas queria lá eu saber disso, vivia iludido na esperança de ser como o
Picasso, como o Van Gogh, fui aprender arte por crença, por paixão, nunca foi
pelo dinheiro, nunca foi pela carreira, era por convicção, por militância.
E foi assim que no
rescaldo daquele fatídico e etílico Verão de 2004, depois de uma pré visão do
que se tornaria a cidade de Lisboa e o país 20 anos mais tarde que cheguei às
Caldas da Rainha, cheio de sonhos e esperanças, sedento de liberdade e de uma
vida fora da casa dos meus progenitores, mesmo se não me incomodasse
minimamente o facto de serem eles a arcar com todas as despesas associadas aos
meus estudos.
Tinha sido na
festa do Avante do ano anterior que tinha tomado a decisão, aí, embriagado encontrara
um antigo conhecido dos escuteiros, um tipo mais velho, o Caixado que me falou
da escola das Caldas e que me a aconselhou. Ficou-me na cabeça, estava
decidido.
E a festa do
Avante continuou, as Caldas, a ESAD, uma utopia, um sitio onde a maioria daqueles
que lá iam parar eram como eu, jovens adultos, velhos adolescentes que sempre
cresceram revoltados, uma revolta surda, desfasados da realidade que os rodeou
durante toda a adolescência, uns na ruralidade mais isolada, outros no meio da Babilónia
e que agora se encontravam ali, livres e entre irmãos prontos para abraçar a
aventura e descobrir o mundo. Sem rédeas, andei demasiado bêbado e drogado para
ter aproveitado verdadeiramente os ensinamentos que os meus professores me
quiseram ensinar, os meus olhos andavam demasiado turvos para ver com olhos de
ver, a maturidade, chegou só muito mais tarde, demasiado tarde, mas quem quer
saber disso, da maturidade e dos ensinamentos, a vida não se aprende dentro de
uma sala de aula, quem quer saber do Monet quando há musica para dançar, miúdas,
corações para conquistar, lagrimas a derramar e a confiança é fraca, quem quer
saber disso quando não se consegue estar no meio das gentes sem um copo na mão,
sem um cigarro na outra, sem martelar a cabeça com mais um charro para andar à
volta e vomitar e vomitar e levantar-se e gritar à lua e correr parque a
dentro pela noite com os lobos. Quem quer, como os seus dezoito dezanove
vinte anos saber de maturidade e de ensinamentos com toda uma vida pela frente,
que sa foda o futuro, no future, viveremos o presente e morreremos se assim
for, felizes, destruídos, mas a morte, a não ser que não seja provocada, não é Verónica?
não chega e o futuro avança e torna-se presente e os estudos acabam e
tornam-se passado e o tempo passou e as oportunidades derramaram-se num copo de
vinho.
As Caldas! Naquele
eterno Avante fiz amigos para a vida, uns mais próximos, outros mais distantes,
amigos da festa, confidentes, partilhas, grupos, projetos, mas sei que mesmo
passados estes vinte anos e toda a distancia que nos separa posso contar com
eles, foram os ensinamentos que aprendi, a amizade, as boas gentes, os abraços,
os risos, os amores. Uma conversa na esplanada à volta de umas cervejas e de
uns pires de tremoços, há lá melhor do que isso? Quase todos saíram dali sem
trabalho nas artes, muitos emigraram, outros foram para Lisboa conduzir tuktuks
e tentar a sorte, continuar a estudar, outros ainda voltaram para trás, para
casa dos pais, eu com o tempo acabei por sair, primeiro atras do amor e depois
para fugir dele. À terceira, para me encontrar a mim mesmo e foi nessa busca
que encontrei, novamente, o amor.
Ai Pedrinho, Pedrinho,
se te pudesse avisar, se te pudesse contar tudo aquilo que sei hoje, preparar-te contra as armadilhas que a vida nos trás, avisar-te de toda a loucura, de toda a doidice, de toda a perdição, para não teres que andar agora a dar ao cabedal, como já o fizeste e como o continuarás
certamente a fazer. Ai Pedrinho, Pedrinho, saiu-te cara a factura, mas não há ponto
sem nó, o exilio trouxe-te os filhos, esse presente da Graça infinita!
Ai Pedrinho, meu
Pedrinho, bem sei que tudo o que te pudesse contar de nada te serviria, mandar-me-ias
para o caralho, chamar-me-ias de cota, de careta, perguntar-me-ias no que me
tornei? Talvez tivesses mesmo orgulho no que te tornas-te? De todas as formas
eu sei que por amor à vida estarias disposto a passar por tudo outra vez, só
para chegares onde estás hoje! A criançada que só dá trabalho e aflições, mas por cada beijinho do bebé tudo passa, por cada sorriso, por cada risada dos meninos
tudo passa. A arte essa, está-te no sangue, nao ligues ao circo, a essas
gentes, ser artista não é profissão, não é discursos, não são lantejolas, ser
artista é uma forma de encarar a vida, de dar a alma, não é para me gabar mas
isso eu sei que tu tens!
Não desistas
Pedro, não desistas Pedro! Sobretudo não desistas Pedro…. Tenho ouvido nos últimos,
bem, certamente mais de dez anos, mas não desistas do quê? De mim? Dos meus
filhos? Dos meus sonhos, de tentar ser feliz, como cada um de nós tenta? Ou da
arte? De tentar viver disso? De entrar no sistema? Rancores, remorsos, talvez,
certamente, contra mim, contra o sistema, contra os que conseguiram, contra a
gente fraca, contra os lambe-cus! É assim, tentar ser uma pessoa melhor de dia
para dia, para mim, para a minha mulher e para os meus filhos, para todos, para o Mundo, é só
isso, só disso é que não posso desistir! O resto que sa foda!
A escola, a arte,
a cultura, os cagões, todo esse mundo snob, toda essa gente sem consciência da
verdadeira realidade das gentes e do mundo, a falarem de boca cheia, toda essa
esquerda-caviar a viver às custas do povo, todos esses sonhos vendidos
aos jovens, toda essa mentira, que sa fodam todos mais às exposições de merda
deles, à "arte" fantoche, às curadorias de merda, aos amigalhaços e aos favorzinhos, aos brochistas
e aos lambe botas, no final não restará nada! Não foi afinal por isso que tu cagaste nisso tudo? Sim, mas era
bom poder viver disso e não ter que andar a dar ao cabedal! Que sa foda, a mola
verga mas não quebra! Mais vale dar ao cabedal que andar a mamar pixas, a levar
no cu! Quando morrer morrerei de pé! É assim mesmo Pedro! Firme e hirto! E se
acontecer vencer? Não há corrida para ganhar, é tudo falso, mas se acontecer, aconteceu, ainda bem, mas não lamberei um rabo!
Foi há vinte
anos atrás, já lá foi, já lá foi Pedro, já passou! Como diria o Jorge Palma para terminar com isto: “Tira a mão do
queixo não penses mais nisso / O que lá vai já deu o que tinha a dar” e por aí continua!