Quando entrei na sala de parto vi gotas de sangue pingarem no chão entre as pernas dela, o bebé já empurrava para sair. Era a reta da meta, um último esforço, força dizia-lhe eu e foi por aí que as coisas se começaram a transformar. Eu já não sei bem o que disto foi verdadeiramente verdade, alucinação ou imaginação, mas ela rangia os dentes, estes tinham-se afiado, estavam transformados em dentes de fera, de besta e a sua mão apertava a minha de unhas cravadas na pele até fazer sangue, esmagava-me os dedos estilhaçando-me os ossos. Pode acreditar, lembro-me de pensar que não tinha ossos, que a minha mão era só feita de carne, contorcida. Ali à volta, aparentemente no controlo da situação haviam todas aquelas mulheres vestidas de branco, ocupavam-se de tudo, uma entre as pernas dela dizia, força, a cabeça já esta quase de fora, outras, seguravam-lhe também as pernas e preparavam toalhas, recipientes e tudo mais, todas elas seguras de si, com um ar estranhamente tranquilo e relaxado como se tudo aquilo fosse simples e natural. Lembro-me de me sentir desintegrar, derreter em suores frios, ficar branco como a cal, tremer, desaparecer. Naquele momento olhei uma última vez pela janela do quarto, apercebi-me que o dia ia nascer e foi nesse preciso momento que vi de novo. Ao primeiro raio de Sol um flash de luz, como que se de um relâmpago se tratasse encadeou-me e um carro a arder, uma daquelas quadrigas romanas puxada por quatro cavalos alados em chamas apareceu. Não sei se está a ver do que falo? Eu já tinha tido algumas visões desse mesmo carro, a primeira tinha sido nove meses antes quando o vi nas labaredas de uma fogueira, debaixo das estrelas, mas foi só naquele último momento que tive a certeza que era o mesmo carro e qual o propósito de tais visões, ele desceu dos céus num clarão de luz, brilhava como o ouro e atravessou todo o céu e todo o espaço, atravessou a janela, entrou pelo quarto dentro e mergulhou directamente pelo cimo da cabeça da minha mulher, para dentro dela, tornando-a também a ela fogo ardente, dourado. Veio-lhe uma última força ao mesmo tempo que os meus olhos deixaram de ver, vidrados por uma espessa camada de água baça, salgadas lágrimas que me turbavam a vista, eu ouvi-a dar um último sopro, profundo, vindo bem lá do fundo. Ouvi um último suspiro antes de um choro e pronto, foi assim que descobri aquilo de novo e que percebi, aquilo a que se chama de felicidade, aquilo que nos enche a alma de um não sei que de impronunciável, de um soluço, de uma golpada de ar afónica impossível de verbalizar e que faz com que tudo o resto, todo o resto do vazio da vida, que tudo o que fica para trás, tudo o que virá para a frente se torne completamente irrelevante. Ele tinha nascido, um menino, as enfermeiras perguntaram-me como é que se iria chamar, respondi orgulhoso: Elias.
(Extracto de um projecto engavetado)
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